Outro dia uma senhora idosa e bem vestida (conjunto de calça e bata, bolsa e sapatos combinando), com o cabelo bem pintado e escovado, me perguntou se eu podia dar uma ajuda para que ela pudesse comer um lanche.
Ou seja, me pediu esmola.
Na hora não dei, mas fiquei o dia todo pensando nisso, não me sai da cabeça.
Não sei se ela estava se fazendo de esperta (sem se dar ao trabalho de disfarçar a aparência? Por quê?), não sei se tinha algum problema (alzheimer?), não sei se é uma aposentada que gastou o dinheiro contadinho da comida com a tintura do cabelo...
Na hora, eu lembro de ter achado um absurdo, uma cara de pau sem tamanho. A gente está tão acostumado a ser enrolado, feito de besta, explorado, que a primeira coisa que vem à cabeça é que é malandragem.
E, na pressa do dia-a-dia (eu ainda tinha que passar em banco, fazer mil coisas), as nossas necessidades e compromissos parecem os mais importantes do universo, e qualquer coisa que nos atrase/atrapalhe é rotulada como inconveviente e sem importância.
Mas vai saber o que leva uma velhinha, que em teoria não deveria precisar disso, a pedir dinheiro para um estranho. Talvez estivesse mesmo precisando de ajuda e tenha achado que, por eu ser mulher, não seria ignorada. Deve ser mais difícil abordar um tiozão.
E eu agi igual a todo mundo. :-(
Devia ter parado e perguntado a ela o porquê. E dependendo da resposta, dado o dinheiro. Agora isso vai me atormentar pela eternidade. :-/
Fiquei deprimida com essa história. Que merda.
Sei lá. Pode ser só a culpa romanceando a lembrança verdadeira do ocorrido, mas agora tenho a impressão que ela estava meio desorientada.
Na hora eu só fiquei passada com a "cara de pau". Mas fico repetidamente me perguntando por que uma velhinha arrumadinha se prestaria à humilhação de pedir comida a um estranho na rua sem necessidade.
Pena que esses questionamentos não me vieram na hora, só agora.
Essa não é a primeira vez que eu, em meio à minha pressa (e por que não dizer, meu egoísmo) sou abordada por um idoso me pedindo ajuda e não ajudo. E me arrependo. E me culpo. E me agonio.
Uma vez, indo para a faculdade (atrasada, atrasadíssima), um senhor chegou junto à janela do meu carro (fechada, naturalmente) e falou alguma coisa. Supondo - provavelmente de forma acertada - que me pedia dinheiro, e sem me dar ao trabalho de virar para encará-lo, eu disse um "não" mal-humorado ainda de perfil.
Quando me virei e olhei, ele, com lindos olhos azuis, me sorria e disse algo como "vá com deus, bom dia pra vc!". E o pior é que não foi de uma forma irônica. Foi uma simpatia que me pareceu espontânea (talvez não especialmente para mim, mas uma postura positiva de forma geral), e deixava claro que não havia tomado minha recusa como pessoal; era apenas rotina pra ele, que não parecia perder tempo nem energia guardando rancor das pessoas que não o ajudavam.
O sinal abriu, eu fiquei alguns segundos indecisa, desarmada, confusa, até que alguém buzinou. Acelerei e parti com o carro, seguindo-o como o olhar pelo retrovisor, como que tomando conta para garantir que chegasse em segurança à calçada. Até perder de vista. E aí eu chorei. Muito. Fui até a faculdade chorando copiosamente dentro do carro.
Alguma coisa, no momento em que ele agiu de forma diferente do que eu esperava, me desestruturou. Eu esperava um resmungo, um dar de ombros, ou até uma atitude hostil. Não um sorriso, não uma atitude conformada, não uma gentileza sem ironia, sem falsidade, sem raiva contida.
Eu, no entanto, agi exatamente como ele esperava. Sem surpresas do lado de cá. Mais uma recusa automática de alguém que ele não conhecia e não parecia culpar.
Assim que saí da aula, liguei para minha mãe, que trabalhava perto do local do encontro, e contei o que aconteceu. Chorei de novo ao telefone. Um misto de culpa, vergonha, pena... Tanta coisa junta que nem sei. Ela me prometeu que passaria lá na saída do trabalho e daria dinheiro a ele. Isso me acalmou.
Quando cheguei em casa, soube que ela não o havia encontrado. Mas havia parado no posto próximo ao sinal, e perguntado sobre ele. Os frentistas informaram que ele de vez em quando ficava ali, que já o haviam visto antes. Então, era questão de tempo até uma de nós topar com ele, aparentemente.
Como era meu caminho, passava pelo local todo dia, sempre procurando por ele. Nunca mais o vi. Várias semanas mais tarde, calhou de minha mãe encontrá-lo. Como ela prometeu, deu-lhe dinheiro. Recebeu o mesmo sorriso e a mesma simpatia que eu, quando não lhe dei nada.
Apesar de saber que nada disso resolve nada, o desfecho da história do velhinho aplacou minha culpa, diminuiu o aperto no peito. E me deu uma sensação de lição aprendida, me fez querer ser menos egocêntrica e menos egoísta.
E aí, 20 anos depois, depois de uma segunda chance, estou eu aqui, me sentindo igualzinha a antes. Com a diferença que desta vez estou impotente, não posso tentar desfazer o resultado do meu descaso e da minha insensibilidade. A velhinha agora não pode ser rastreada, encontrada. Foi alguém que me pediu ajuda puramente por acaso, com quem eu não vou encontrar de novo.
Duas décadas depois, e em que eu mudei? O que eu aprendi?
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